Livro 1 - Página 2

Dormi mais uma vez com a certeza de que o fim seria aquela escuridão, e até me confortei de alguma forma, pois já não escutava nada além dos meus pensamentos. No entanto, nem tudo é como queremos. Acordei diante do mesmo cenário desesperador para mim, onde ao lado do meu caixão, no plano físico, as pessoas desmaiavam, choravam e aplaudiam. O hino de Oxalá era entoado a cada instante e meu desespero voltou a aflorar, só que desta vez eu me revoltava contra os Guias e Orixás, porque eles deixaram que eu morresse.

– “Oxalá, cadê você que nada fez? Seu maldito! ”.

Pobre de mim, era um infeliz, querendo ser imortal no corpo físico. Maria se aproximou de mim e eu a questionei aos berros e com insultos: 

– Maria, por que mandaram você e não o próprio Oxalá? Ele está com medo de mim? 

Ela, calma, me disse: – Manoel, tudo no seu momento, não se revolte com coisas tão pequenas e já sem importância para você nesse instante. Seus laços com o corpo já foram cortados, iremos retirá-lo daqui e levá-lo a um lugar mais calmo. 

Nesse momento, senti meu corpo frio e, a cada segundo que passava mais gelado ele ficava. 

– Não, eu não sairei daqui. Já que não significo nada para Oxalá, a quem dediquei minha vida, eu posso muito bem ficar com o meu povo, com meus filhos e netos, com aqueles que realmente me amam. 

Ela respondeu:

– Manoel, filho de Deus Pai, não seja orgulhoso. Nada nesse mundo é nosso e é hora de seguir, saiba que nada poderemos fazer por você se sua escolha for a de ficar. 

– Eu ficarei e nada nem ninguém vai me impedir de fazer tudo que eu ainda tenho para fazer nessa terra. 

Maria mais uma vez tentou me persuadir: 

– Manoel, seu tempo de encarnado acabou. Você terá muito que fazer do lado de cá da vida. 

– Já disse que ficarei com minha família e nem que o próprio Oxalá venha aqui eu irei deixá-los. 

– Manoel, aqui você não ficará e muito me dói vê-lo escolher o caminho mais difícil. Saiba que, de qualquer modo, estaremos ao seu lado e que a ajuda virá quando se fizer necessária, porque o Pai Celeste não abandona nenhum filho. 

Nesse momento, começou um grande tumulto dos dois lados: choro e gritos que doíam no meu corpo do lado material; gargalhadas e ofensas do lado espiritual. Ouvi o som de mãos que batiam em minha urna funerária, enquanto diziam:

– Ele será nosso, o chefe ficará muito contente. Velho feiticeiro, sua hora chegou! 

Eu estava desesperado, pois os gritos eram cada vez mais apavorantes e, pela última vez naquela década, eu ouvia o hino de Oxalá. Maria tentou um último contato, mas eu não lhe dei importância, embora meu corpo balançasse e eu gritasse e pedisse por ajuda mais uma vez. Quando percebi o que estava acontecendo, meu pânico foi total. Minha urna funerária descia à sepultura e eu sentia cada pá de terra bater em meu caixão, então, gritei, chorei copiosamente até que a exaustão tomou conta de mim. 

Lembro-me de tudo o que vi como se fora um sonho ou meros pensamentos de um velho morto, pois vi naquela hora meu tempo de criança, quando minha mãe dividia com alegria o pouco que tinha entre os filhos, depois, meu tempo de moço jovem e as primeiras manifestações da mediunidade em minha vida. Foi quando chamei por Maria, minha esposa tão dedicada e que sempre esteve ao meu lado, só que dessa vez ela não me respondeu. O nascimento dos meus filhos, de meus netos, tudo isso passou pela minha cabeça e eu ainda me perguntava: 

– “Por que fizeram isso comigo? Por que me deixaram aqui? ”.

Foi quando ouvi gargalhadas assustadoras que me enregelaram a alma e vi uma mão esquelética aparecer dentro do meu túmulo e do lado de fora uma voz apavorante me disse: 

– Feiticeiro, vim cobrar o que é meu por direito. 

A mão agarrou as roupas de chefe de terreiro, às quais eu tanto era apegado, e me puxou para fora. Era noite, não saberia dizer quanto tempo fiquei ali, exposto à chuva forte que caia e a vários espíritos que se reuniam em círculo, alguns deles com várias partes do corpo faltando, todos rindo de mim. Ao centro, sentado em meu túmulo, encontrava-se um ser alto, com capuz preto, e que olhava para o chão. Era alguém frio e sua aura negra. Eu tossia e chorava, meu corpo estava completamente dolorido, meu estômago doía sem parar e, ao inspirar, o ar queimava-me por dentro. Ele foi o primeiro a falar: 

– Pensei que esse encontro nunca aconteceria, amigo...

– Não sou seu amigo, quem é você? 

Ele mais uma vez riu e os outros fizeram coro ao som horrendo. 

– Quem sou eu, me chame como quiser velho, você mesmo já me deu vários nomes: Tranca rua, Caveira, Veludo. Eu fui muitas coisas para você, velho, principalmente quando era para eu fazer favores em troca de migalhas, dos quais você e esta corja de infelizes que te procuravam para fazer o mau a outros precisavam... 

– Eu só era condutor, nunca fiz mal a ninguém. 

Ele respondeu: 

– Desse jeito eu vou sentir pena de você velho... 

– Por favor, eu só quero ir para casa... 

Mais uma vez ele riu: 

– Casa? Que casa? Você agora é meu, irá me pagar por tudo que fiz para você. É chegada a hora do acerto de contas, seu velho maldito. 

Então, ele ordenou aos seus: 

– Acorrente-o, como ele fazia conosco. 

Eu não tinha força para fugir, tentei levantar, mas minhas pernas estavam fracas. Fui acorrentado e uma vez mais a escuridão foi total.

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